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terça-feira, 14 de abril de 2020

A DISPONIBILIDADE DE ÁGUA NO SEMIÁRIDO DO PARAÍBA NA CRISE DO CORONA VÍRUS.



Pedro Costa Guedes Vianna/UFPB/abril de 2020


Dizem que “Deus é Brasileiro”, e dizem também que quando chove no sertão, foi Deus quem mandou a chuva para salvar o sertanejo. Por outro lado, a seca, quando assola a vida do povo do interior do Nordeste, é um “castigo divino”. Essas são afirmações que não se sustentam.  Por outro lado, foram os homens, os homens de verdade, quem construíram as obras de reservas hídricas, açudes de todos os portes, cisternas e inúmeras Tecnologias Sociais Hídricas existentes no Semiárido Nordestino. São elas que neste momento vão ajudar a minimizar os impactos da pandemia no interior do Brasil, juntamente com as transposições já finalizadas como a do Eixo Leste da Transposição das Águas do Rio São Francisco.
Misticismos à parte, existe uma unanimidade entre todos cientistas, médicos e especialistas e até entre a população em geral, é importante lavar as mãos, sempre, muitas vezes ao dia, e para isso é preciso ÁGUA! Não há como fugir disso, dizem todas as autoridades. Portanto a disponibilidade hídrica, ou seja, a oferta de água, seja ela pelas Companhias Estatais, Sistemas autônomos de Prefeituras ou pela Operação Pipa do Governo Federal, são neste momento CRUCIAIS. Óbvio que o acesso à água sempre foi primordial para a vida, mas neste momento, ele sobe de importância pois é o elemento principal de combate a pandemia.
Assim, este texto analisa o aumento da disponibilidade nos grandes e médios açudes da Paraíba, nos tempos em que o vírus Sars-Cov-2, chega ao Nordeste, entrando pelo litoral, e como os europeus no passado, iniciando sua marcha para o oeste rumo ao semiárido. Uma análise do nível, dos reservatórios da Paraíba nos mostra uma boa notícia, de janeiro até a primeira semana de abril, tivemos um incremento muito grande nas reservas hídricas do nosso Semiárido. Os dados estão disponíveis na site da AESA-PB <http://www.aesa.pb.gov.br/aesa-website/monitoramento/ultimos-volumes/> e são confiáveis.  Pode-se imaginar que este cenário também deve estar se repetindo em outros estados do Nordeste, obviamente com diferenças regionais. Alguém sempre dirá: foi Deus quem mandou as chuvas, (sabemos que não é bem assim) mas é preciso lembrar que fomos nós os homens que construímos os meios de reservá-la, mesmo com todas as críticas que possamos ter à nossas intervenções na natureza.
A seguir exemplificamos dois dos maiores açudes da Paraíba, onde os gráficos mostram o aumento das reservas de águas. O Reservatório do Boqueirão (Epitácio Pessoa) abastece Campina Grande e Região com uma população superior a 600.000 habitantes, que inclusive também recebe águas da Transposição do Rio São Francisco. Este, passou de 15% para 64% de sua capacidade, passando de 70 milhões para 296 milhões de m³ de água, um incremento de 226 milhões. O reservatório de Coremas, na região central do Estado, passou de 8% para 38%, passando de 59 milhões para 282 milhões de m³. Isso demonstra que a partir de 15 de março, possivelmente quando o vírus estava entrando na Paraíba, os açudes receberam importantes aportes hídricos.



Destes dados, podemos inferir que toda rede de drenagem, à montante destes reservatórios, certamente foi beneficiada por este aporte, e as cisternas de placas que já superam os 800.000 em toda a região Nordeste e mais de 100.000 só na Paraíba, dados da ASA Brasil <https://www.asabrasil.org.br/mapatecnologias/> e do LEGAT/UFPB <http://www.geociencias.ufpb.br/leppan/gepat/atlas/> estão cheias. Portanto as cisternas que bastecem as populações do semiárido, construídas pelas ONGs e pelo Movimento Social Organizado, com apoio do Governo Federal, entre 2003 e 2016, estão cheias e que ajudarão as populações dispersas no meio rural, neste momento. Isso significa um aporte de  12.800.000 m³ no Nordeste e 1.600.000 m³ na Paraíba, diretamente onde se precisa da água, ou seja, ao lado da casa do agricultor sertanejo.
Não houvesse o terremoto político-jurídico-parlamentar, ou simplesmente, “O Golpe” que quebrou a normalidade institucional no país, haveriam muitas mais cisternas e obras que nos colocariam em situação melhor diante do quadro que esta se formando. Pois, sob a presidência de Michel Temer e de seu sucessor, os recursos para as Tecnologias Sociais Hídricas, “secaram” quase que totalmente.

Pedro Costa Guedes Vianna
Departamento de Geociências da UFPB

Guia para pensarmos o coronavírus (II)




Continuamos com pequena cartografia sobre o que está a pensar a filosofia atual por volta do Covid-19. Nesta coluna recolhem-se algumas das reflexões das pensadoras mais populares entre a esquerda do mundo anglo-saxão.




Transcrito de;
em Galego, da Espanha.


22 MAR 2020

Nesta coluna agrupamos as temperás reflexons das pensadoras mais populares entre a esquerda anticapitalista —em sentido mais amplo— do mundo anglo-saxom.
Para a escritora canadiana Naomi Klein o capitalismo do desastre é aquele em que as grandes indústrias privadas se beneficiam das crises de segurança a grande escala através de privatizaçons. A estratégia política deste capitalismo do desastre é a doutrina do shock, um manejo destas crises que lhe permite, enquanto a populaçom está concentrada em sobreviver às emergências diárias e nom tem outra opçom que confiar em quem está no poder, profundizar nas políticas que geram mais e mais desigualdade
Agora, diz Klein,
“o shock é realmente o próprio vírus. E foi manejado de umha maneira que maximiza a confussom e minimiza a proteçom. Nom creio que isso seja umha conspiraçom, é só a forma em que o governo dos EUA e Trump manejou —completamente mal— esta crise. Trump até agora tratou isto nom como umha crise de saúde pública senom como umha crise de perceçom, e um problema potencial para a sua reeleiçom”. Quanto às possíveis saída de esquerda, Klein acha que “quando somos provados pola crise, ou retrocedemos e nos desmoronamos, ou crescemos, e encontramos reservas de força e compaixom que nom sabiamos que éramos capazes de ter. Esta será umha dessas provas.”
Klein está a trabalhar muita ativamente no apoio a Bernie Sanders e no impulso dum Green New Deal.

Naomi Klein: “O choque é realmente o próprio vírus. E foi manipulaqdo de uma maneira que maximiza a confusão e minimiza a proteção”.

Numa linha semelhante escreveu Judith Butler, também envolta na luta pela candidatura de Sanders. Ainda que seja uma pensadora bem próxima ao paradigma da biopolítica da anterior entrega, neste artigo expressa-se numhas chaves mais práticas e centradas na campanha dos Estados Unidos. Butler acha certo potencial no confinamento, posto que “coincide com um novo reconhecimento da nossa interdependência global durante o novo tempo e espaço que impom a pandemia”. Se bem aponta à capacidade dos poderes para se reproduzirem e fortalecerem dentro das zonas pandémicas, também acha linhas de fuga. Sinala, por exemplo, a resposta do político germano Karl Lauterbach à pretensom de Trump de comprar os direitos sobre a possível vacina para o Covid-19, ao espetar-lhe que “o capitalismo tem limites”. Na defesa dum mundo onde todas as vidas importem, e em plena campanha pola candidatura de Bernie Sanders, Butler destaca como “a proposta de saúde universal e pública revitalizou um imaginário socialista nos Estados Unidos, um que agora deve esperar para fazer-se realidade como política social e compromisso público neste país.”
O provocador filósofo esloveno Slavoj Zizek, com a sua combinaçom habitual entre cultura pop e ostalgie comunista, publicou já um par de artigos em Russia Today analisando o impacto do coronavírus. No primeiro artigo, de 3 de fevereiro, apontava ao componente racista com o que se estava a falar do novo vírus, mas a sua reflexom central é a que pom o foco numha “perspetiva emancipatória inesperadamente oculta neste pesadelo”, que por outra parte está a oferecer a imagem real dum mundo nom-consumista. Com o seu habitual —e provocador— gosto polo potencial político das estéticas pós-apocalípticas, Zizek vê na “beleza melancólica” das avenidas vazias de Xangái ou Hong Kong umha oportunidade para retificar o mundo durante a quarentena. É nesta reflexom que profundiza num segundo artigo, após advertir de como o Covid-19 poderia funcionar como um catalisador dos outros vírus ideológicos latentes na sociedade, tais que o racismo, as teorias conspiranoicas ou as notícias falsas. Rejeita as teorias da conspiraçom por volta do coronavírus, mas isso nom lhe impede ser crítico com o manejo político da pandemia: “a bem fundamentada necessidade médica de estabelecer quarentenas fijo-se eco das pressons ideológicas para estabelecer limites claros e manter em quarentena os inimigos que representam umha ameaça para a nossa identidade”.
Para além desses riscos iniciais, o coronavírus também poderia ser o sinal que precisávamos para umha mudança política radical que nos salve do desastre capitalista (e mesmo lembra o potencial utópico que Fredric Jameson advertia nos filmes de catástrofes —asteroides sobre a Terra, vírus letais...—, pois davam a oportunidade a solidariedades globais). É por isso que o esloveno fala do coronavírus como “golpe ao Kill Bill”, pois a epidemia é “um sintoma de que nom podemos continuar no caminho que temos seguido até agora, precisa-se essa mudança”. Refere-se explicitamente às catástrofes derivadas do caos climático, e aponta que em todos estes casos “a resposta nom é o pánico, senom que o duro e urgente trabalho de estabelecer umha sorte de coordenaçom global eficiente”, pondo como exemplo o trabalho da OMS. É nesse sentido que acha que “talvez outro —e mais beneficioso— vírus ideológico se expandirá e talvez nos infete: o vírus de pensar numha sociedade alternativa, umha sociedade mais lá do estado-naçom, umha sociedade que se atualize como solidariedade global e cooperaçom”; sem deixar de apontar (como Boaventura de Sousa) “a ironia suprema do feito de que o que nos uniu a todos e nos empurrou a umha solidariedade global, se exprima de tal maneira que há que evitar o contato entre pessoas e mesmo isolar-se”.
Zizek vê na “beleza melancólica” das avenidas vazias de Xangái ou Hong Kong uma oportunidade para retificar o mundo durante a quarentena.

Desbota que o coronavírus seja à China o que a crise de Chernobyl à queda da URSS, mas crê que poderia nascer “um novo comunismo como sorte de organizaçom global com capacidade de controlo e regulaçom da economia, mesmo limitando a soberania do estado-naçom quando for precisso, no marco da ‘guerra médica’”. Isto é: o coronavírus como a oportunidade para umha nova governança, forçosamente global, solidária e com umha economia em incipiente planificaçom, um novo comunismo que nom concreta demasiado e que mesmo acha de forma embrionária em praxes como a da OMS.
Por sua parte, outro dos grandes pensadores de referência internacional, Noam Chomsky, limitou-se num primeiro momento a um tuit onde se perguntava “What is the Coronavirus”, ligando para um vídeo da jornalista do The Guardian Sarah Boseley, a modo de advertência sobre a desinformaçom. Posteriormente deu umha entrevista em Il Manifesto à sua tradutoria italiana, Valentina Nicoli, reconhecendo que “nom sei se há algo que valha a pena publicar”, mas em vista de que estám a circular pola rede falsos artigos do lingüista estadunidense, recobram todo o interesse as suas únicas opinions deitadas até o de agora sobre o tema. De entrada Chomsky afirma que “a situaçom é mui grave. E nom há credibilidade na afirmaçom de que o vírus se propagou deliberadamente”. No seu diagnóstico os países assiáticos foram capazes de conter a epidemia, indo os da UE com retrasso e os EUA numha situaçom terrível. Acussa Trump e Kushner de minimizarem a gravidade da crise, atitude que se viu “amplificada polos meios de comunicaçom da direita, polo que muitas pessoas deixárom de tomar as precauçons mais básicas”. A pandemia, incide, apanha uns hospitais debilitados após o “assalto neoliberal”, polo que estamos perante o “enéssimo exemplo do fracasso do mercado, ao igual que o é a ameaça dumha catástrofe meioambiental. O governo e as multinacionais farmacéuticas sabem de há anos que existe umha grande probabilidade de que se produza umha grave pandemia, mas como nom é bom para os benefícios preparar-se para isso, nom se fijo nada.”

Noam Chomsky acusa o Trump e Kushner de minimizarem a gravidade da crise, atitude que se viu “amplificada pelos meios de comunicação da direita, fez com que muitas pessoas deixassem de tomar as precauções mais básicas”.

Nesta mesma linha anti-neoliberal o referente mais jovem da esquerda trabalhista, Owen Jones, apontava à enorme importância da questom de classe e de género na incidência que vai ter o coronavírus no Reino Unido, necessariamente diferente nos ricos que voam em jets privados a umhas férias de luxo, na classe média profissional que teletrabalha e na primeira linha proletária que permanece a pé de supermercado. Num artigo anterior, de maior calado no longo prazo, esforçava-se por fazer pedagogia deste colapso e lograr vinculá-lo a um problema muitíssimo maior mas muito menos visível, como é o do caos climático.
Dumha maneira semelhante, Mike Davis analisa o impato que vai ter a epidemia —um “Katrina médico”— nuns EUA com umha “marcada divisom de classes no cuidado da saúde” e com um sistema público de saúde enormemente erodido polos interesses capitalistas. Ainda, pom de relevo a dimensom que pode encontrar esta epidemia ao entrar em países empobrecidos da África ou Ássia, lembrando como 60% da mortandade mundial do vírus H1N1 se produzira no Oeste da Índia, ao se produzir umha “sinergia sinistra” com a desnutriçom.
O geógrafo marxista David Harvey, por sua parte, comparte reflexons comuns a toda a esquerda, como a natureza social das catástrofes naturais (ele já falara de “terremotos de classe” apropósito do da Nicaragua em 1973 e Cidade de México em 1995) ou a dura fatura que se está a pagar polas políticas neoliberais no campo da saúde. Quanto ao impato claramente diferencial segundo a classe (oculta sob a retórica do “estamos todos juntos nisto”) desta crise, Harvey coloca o exemplo dessa “nova classe trabalhadora” dos cuidados, feminizada e racializada, que se está a encarregar da primeira linha de combate ao vírus, e que junto com as operárias dos centros logísticos estám a ser os setores mais expostos à infeçom. Mostra-se, igualmente, mui crítico com a agudizaçom das diferenças de classe que vai supor o teletrabalho.

Segundo David Harvey, uma nova reativação chinesa da economia internacional é agora impossível.


Quanto à crise económica que seguirá ao surto, Harvey realiza umha análise comparativa com a de 2007-2008, quando China resgatara o capitalismo global. Segundo ele, umha nova reativaçom chinesa da economia internacional é agora impossível. A crise é tam profunda que setores tam importantes até o de agora para a acumulaçom de capital como o do turismo internacional (que entre os anos 2010 e 2018 medrou de 800 milhons de visitas internacionais a 1.400) ficarám paralisados, se bem com um efeito positivo na ecologia. A chave seria que “a acumulaçom sem fim do capital em forma de espiral está a derrubar cara dentro”, polo que “se a China nom pode repetir o seu papel de 2007-8, entom a cárrega de sair da atual crise económica agora translada-se aos Estados Unidos e aquí está a ironia final: as únicas políticas que funcionarám, tanto económica como politicamente, som muito mais socialistas que qualquer cousa que Bernie Sanders poda propor e estes programas de resgate terám de inicar-se sob os auspícios de Donal Trump, pressumivelmente baixo a máscara do Making America Great Again”. É dizer, umha saída socialista à crise baixo outro nome.







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segunda-feira, 13 de abril de 2020

Milão. A cidade mais privilegiada de Itália está agora na fila do pão



O fim de uma era. A cidade mais privilegiada de Itália está na fila para o pão. A partir de Milão, onde vive e está isolado, o escritor italiano Antonio Scurati escreve o que vê da janela da sua casa.


https://observador.pt/
25 mar 2020

Antonio Scurati *










A Piazza del Duomo, em Milão, habitualmente repleta de turistas, está deserta há semanas devido à quarentena nacional imposta em Itália
CORBIS VIA GETTY IMAGES





De Milão, onde vive e está isolado, o professor e escritor italiano Antonio Scurati escreve o que vê da janela da sua casa.

"Como posso convencer a minha mulher de que, enquanto olho pela janela, estou a trabalhar? — perguntava-se Joseph Conrad no início do século passado. Eu, em vez disso, pergunto-me: como posso explicar à minha filha que, quando olho pela janela, vejo o fim de uma era? A era em que ela nasceu, mas que não conhecerá, a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da Humanidade.

Vivo em Milão, até ontem a mais evoluída, rica e brilhante cidade de Itália, uma das mais desejadas do mundo. A cidade da moda, do design, da Expo. A cidade do aperitivo, que deu ao mundo o Negroni Sbagliato e a happy hour e que hoje é a capital mundial do Covid-19, a capital da região que, sozinha, soma trinta mil contágios confirmados e três mil mortos. Uma taxa de mortalidade de 10%, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas.

As sirenes das ambulâncias tornaram-se a banda sonora dos nossos dias; as nossas noites são atormentadas por homens adultos que choramingam no sono:
-- O que é, sentes-te bem?
-- Nada, não é nada, volta a dormir.
Milhares de amigos, parentes e conhecidos tossem até cuspir sangue, sozinhos, fora de todas as estatísticas e sem qualquer assistência, nas camas dos seus estúdios decorados por arquitetos de renome.

Se, neste momento, olhar pela janela, vejo uma pobre loja de conveniência gerida com admirável diligência por imigrantes cingaleses. Até ontem, era uma singular anomalia neste bairro semicentral e, ao seu modo elegante, uma nota dissonante.
Hoje é um lugar de peregrinação. Na fila para o pão em frente às suas vitrinas despidas, vejo homens e mulheres que até ontem o desdenhavam por não ter a sua marca preferida de farinha.
Ficam, apoiados pela disciplina do desânimo, a um metro de distância uns dos outros, ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados, com máscaras improvisadas, feitas de pedaços de tecido com os quais, até ontem, protegiam as plantas exóticas do seu roof garden, gazes desfiadas penduradas nos seus rostos com a melancolia mole dos restos de uma era acabada.

Vejo estes homens e estas mulheres tristes, incongruentes consigo mesmos. Olho-os. Não tenho nenhuma intenção de os diminuir ou de troçar deles. São homens e mulheres adultos, contudo por cima das máscaras mostram o olhar assustado das crianças carentes. Chegaram totalmente despreparados ao seu encontro com a história e, no entanto, precisamente por este motivo, são homens e mulheres corajosos. Fizeram parte do pedaço mais abastado, protegido, longevo, bem vestido, nutrido e cuidado da Humanidade a pisar a face da Terra e, agora, na casa dos cinquenta, estão na fila do pão.

A sua aprendizagem na vida foi uma longa aprendizagem da irrealidade televisiva. Tinham vinte anos quando assistiram, a partir das suas salas de estar, à primeira guerra da história humana ao vivo na televisão, trinta quando foram alvejados através dos televisores pelo terror midiático, quarenta quando a odisseia dos condenados da terra aterrou nas praias das suas férias. Todos encontros fatídicos que não poderiam perder. As grandes cenas da sua existência foram consumidas em eventos midiáticos, foram guerreiros de sala, banhistas nas praias dos migrantes, veteranos traumatizados pelas noites passadas em frente à televisão. E agora estão na fila do pão.



"Uma taxa de mortalidade de 10 por cento, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas. As sirenes das ambulâncias tornaram-se na banda sonora dos nossos dias"



A sua infância foi uma mangá japonesa, a sua juventude uma festa de piscina — lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e íamos sempre a uma festa —, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade insossa e feroz: o frenesi do trabalho, os verões na praia, o sublime do spa. Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam, mais inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca viveram uma questão sobre o seu lugar no universo. E agora, aos cinquenta anos, com os cabelos já brancos, o abdómen prolapso e a ânsia que lhes incomoda os pulmões, estão na fila do pão.

Turistas compulsivos, correram o mundo sem nunca sair de casa e agora a sua casa marca para eles os limites do mundo; sofreram quase só dramas interiores e agora o drama da história catapulta-os para a linha de fogo de uma pandemia global; têm uma casa na praia e um carro de última geração, mas agora estão na fila do pão; tiveram mais cães do que filhos e agora arriscam as suas vidas para levar o seu caniche a mijar.

Olho-os da janela do meu estúdio enquanto escrevo. Observo-os enquanto o número de mortes sobe para quatro mil, enquanto o contágio cresce exponencialmente, enquanto sustenho a respiração para não inalar o ar do tempo. Olho-os e compadeço-me deles porque foram a geração mais sortuda da história humana, mas, depois, tocou-lhes viver o fim do seu mundo justamente quando começaram a ficar demasiado velhos para esperar um mundo vindouro. Porém, terão de o fazer. E o farão, estou seguro. Vão ter de imaginar o mundo que têm sido obrigados a experimentar nestes dias: um mundo que se questiona sobre como educar os próprios filhos, sobre como preservar um ar respirável, sobre como cuidar de si e dos outros. Uma era acabou, outra começará. Amanhã. Hoje estamos na fila para o pão. Hoje os jornais titulam: "resiste, Milão!" E Milão resiste.

Lanço um último olhar pela janela sobre os meus contemporâneos dos cinquenta anos, os meus concidadãos milaneses, os meus rapazes repentinamente envelhecidos: como são grandes e patéticos com os seus ténis de corrida e as suas máscaras cirúrgicas. Tenho piedade, compreendo-os, compadeço-me deles. Dentro de alguns segundos estarei na fila junto deles."


Antonio Scurati - professor de Linguística e Comunicação na Universidade de Milão.



sábado, 11 de abril de 2020

As previsões de Mujica sobre a pandemia: “não sei se chegamos aos limites do homem”


"Estamos fritos", diz o ex-presidente uruguaio sobre o "bando de picaretas" que lideram os países do mundo em plena crise

Amilton Farias Amilton Farias
11/04/2020



No último final de semana saiu no canal Filo News uma entrevista imperdível com o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica.
Mujica filosofou com o jornalista argentino Julio Leiva sobre o coronavírus e suas consequências e, ainda que diga que não pretende “fazer futurologia”, fez algumas previsões sobre o mundo que teremos pós-pandemia. O pior, diz, é que os líderes que temos atualmente não possuem nenhuma visão geopolítica para lidar com a crise. “Olha para o Trump… É de chorar. Estamos fritos”, diz.

Traduzimos os trechos mais importantes da entrevista para que vocês possam refletir. É profundo, é sagaz, é terno, é Mujica. Leiam e assistam.
PORTAL NFL NOTÍCIAS

***

– Os líderes mundiais são uma consequência da época em que estamos vivendo. E não te falo de esquerda nem de direita. Há uma tendência a ser um bando de picaretas. Por que não olham para mais adiante? A que vê mais longe é a velha Merkel, que está para sair. Estamos fritos. Não há gente que olhe geopoliticamente. Olha para o Trump… é de chorar. Quando a democracia elege um “coiso” desses estamos fritos. Seria melhor se fizéssemos por sorteio, talvez saísse algo melhor.

“Por que não olham para mais adiante? A que vê mais longe é a velha Merkel, que está para sair. Estamos fritos. Não há gente que olhe geopoliticamente. Olha para o Trump… é de chorar ...”

– Ainda não se pode fazer futurologia, mas vejo muitos perigos pela frente. (A pandemia de coronavírus) nos pode trazer uma epidemia de nacionalismo. O nacionalismo é uma coisa positiva para a liberdade dos pequenos, para a independência dos fracos, mas o nacionalismo extremo é terrível nas mãos das grande potências, porque é sempre às custas dos fracos.

– Haverá uma guerra entre os laboratórios para ver quem faz primeiro a vacina ou o remédio. Em toda crise há ganhadores e perdedores. Com certeza nesta crise haverá gente que vai explorar as leis do mercado a seu favor. Agora temos a crise da pandemia, mas depois teremos a crise das consequências. 3 bilhões e tanto de pessoas fazendo quarentena é muito para que não respingue em todos. Vamos ter crise de preços. Não há nada estável, está tudo em jogo.

– É tão bonita a vida que ao chegar ao final queria dizer-lhe que, apesar das dores, das quedas, que por favor sirva outra dose. Porque o importante na vida não é triunfar, é recomeçar cada vez que se cai. Por isso nada de frouxidão nem autopiedade. Mal tempo, boa cara, e vamos pra cima.

“O importante na vida não é triunfar, é recomeçar cada vez que se cai. Por isso nada de frouxidão nem autopiedade. Mal tempo, boa cara, e vamos pra cima.”

– Há uma disparada tecnológica terrível. Hoje te matam com o controle remoto, sem sequer colocar a cara, você não tem como reagir. Mataram a poesia. Morreu o espírito, morreu a alma. A ciência contemporânea está condenando o que chamamos de liberdade. Ou melhor: se por liberdade entende-se seguir seu desejo e suas inclinações, a liberdade existe; se por liberdade entende-se poder criar seus desejos e suas inclinações, a liberdade não existe. Este mundo tecnológico e de avanços científicos é pavoroso. Nos deixou sem religião, nos deixou sem alma, nos deixou sem espírito.

– Teríamos que pensar por todo o planeta e tomar medidas por todo o planeta. Inventamos bobagens para acumular e não atendemos necessidades básicas. Gastamos um montão de dinheiro em porcarias inúteis e não atendemos questões que são centrais. Mas os interesses imediatos são mais importantes do que as decisões globais de longo prazo. Não sei se chegamos aos limites do homem.

“A presença da China vai seguir crescendo, gostemos ou não. Os países asiáticos irão cada vez pesar mais e cada vez menos a Europa, que está velha. E nunca vi as grandes potências, quando entram em decadência, não se sacudirem. Haverá muito inconformismo.”

– Creio que vamos viver uma época relativamente convulsionada, com muito inconformismo por toda parte. Nesta etapa do capitalismo em que estamos, uma etapa consumista, essencialmente, uma cultura que é favorável à acumulação em grande escala, vamos sentir a agulha e o peso da crise econômica e isso vai cair sobre as expectativas subliminares de muita gente e vai produzir muito inconformismo. Pode haver saídas nacionalistas, cada um que se vire do seu jeito.

– Me parece que a presença da China vai seguir crescendo no mundo, gostemos ou não. Os países asiáticos irão cada vez pesar mais e cada vez menos a Europa, que está velha. Há mudanças em todas as relações de poder no mundo. E eu nunca vi as grandes potências, quando entram em decadência, não se sacudirem. Vai haver inconformismo. Mas estes são problemas das pessoas do futuro.

– Você não pode consertar o mundo, mas pode conseguir que a loucura deste mundo não te arraste. Trata de ter tempo para cultivar teus afetos. Trabalhe para viver, para ter o necessário, o imprescindível, mas deixe tempo para teus afetos, que é a única coisa que você vai levar. Você não pode mudar o mundo, mas pode conduzir sua vida, há uma independência que está aqui (no cérebro), essa nenhum governo pode roubar.

“Você não pode consertar o mundo, mas pode conseguir que a loucura deste mundo não te arraste. Trabalhe para viver, para ter o necessário, o imprescindível, mas deixe tempo para teus afetos, que é a única coisa que você vai levar.”

– Fale com esse que leva dentro. Galope território dentro de você. Você não precisa se comunicar, o que precisa é se comunicar com seu eu interior, esse que você leva sepultado e tampado. Busque em lições de sua própria história. Vale a pena perder um pouco de tempo nas pequenas coisas interiores. Se quiser colocar em termos difíceis: faça um pouco de introspecção durante o curso de sua vida, e verá quantas lições vai poder aprender que não lhe contam os livros. É bom deitar com a pança para cima, olhar o céu e pensar e recordar, não para se atormentar, mas para aprender.

Entrevista na integra;


domingo, 19 de janeiro de 2020

Economia global corre risco de recair na Grande Depressão, adverte FMI

Economia global corre risco de recair na Grande Depressão, adverte FMI

18.01.2020

Fonte:
br.sputniknews.com



A diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, alertou que a economia mundial corre o risco de mergulhar de novo na Grande Depressão, impulsionada pela desigualdade e instabilidade no setor financeiro.
Uma nova pesquisa, feita pela agência reguladora do sistema financeiro mundial, revelou que uma tendência semelhante à que culminou com o grande colapso do mercado em 1929 já estaria em andamento.
Em meio a seu discurso no Instituto Peterson de Economia Internacional em Washington (EUA), Georgieva indicou que, embora o fosso de desigualdade entre países se tenha fechado nas últimas duas décadas, este fenômeno tem aumentado dentro dos países, um dos quais é o Reino Unido.
"No Reino Unido, por exemplo, os top 10% controlam agora quase tanta riqueza como os 50% da base. Esta situação reflete-se em grande parte da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], onde a desigualdade de renda e riqueza atingiu, ou está próxima de atingir, máximos históricos", cita o jornal New York Times as palavras da chefe do FMI.
"De certa forma, esta tendência preocupante faz lembrar o início do século XX, quando as forças gêmeas da tecnologia e da integração levaram à primeira idade dourada, a década de 1920, e por fim ao desastre financeiro", destaca.

Volatilidade financeira

Na opinião de Georgieva, novos problemas, como a emergência climática e o aumento do protecionismo comercial, provavelmente causarão agitação social e volatilidade nos mercados financeiros durante esta década.
No contexto das disputas em curso entre EUA e Europa, ela afirmou que "o sistema comercial mundial precisa de melhorias significativas".
O especialista americano em política e finanças Eric LeCompte disse que o FMI transmitiu uma forte mensagem sobre o potencial para outro grande desastre financeiro.
A matriz do Fundo Monetário Internacional (FMI), na capital dos EUA, Washington D.C
CLIFF OWEN
A matriz do Fundo Monetário Internacional (FMI), na capital dos EUA, Washington D.C
"Com a desigualdade aumentando e preocupações de estabilidade nos mercados, temos que levar este aviso a sério", comentou LeCompte ao The Guardian.

China representa desafio para liderança norte-americana na economia mundial, considera especialista


China representa desafio para liderança norte-americana na economia mundial, considera especialista


ECONOMIA



Fonte:
br.sputniknews.com/economia/

16.01.2020

A crescente autonomia chinesa em relação à tecnologia ocidental representa uma ameaça à liderança econômica dos Estados Unidos, comentou Irina Komarova, acadêmica em teoria econômica.
Nesta quarta-feira (15), EUA e China assinaram o primeiro pacote de acordos comerciais. Como parte dos acordos, Pequim aceitou comprar produtos norte-americanos no valor de US$ 200 bilhões (R$ 835 bilhões) ao longo dos próximos dois anos, o que inclui importações de serviços e energéticas, além de produtos industriais e agrícolas.
Desta forma, o país norte-americano espera diminuir o déficit na balança comercial com o gigante asiático para um valor "honesto". Pequim também se comprometeu a proteger os direitos de propriedade intelectual e aumentar o acesso ao seu mercado interno.
"A República Popular da China criou um sistema financeiro e uma base técnico-científica independentes do Ocidente, o que, combinado com um fator de produção como o trabalho, cria uma ameaça direta à liderança econômica mundial dos Estados Unidos", analisou Komarova. A economia chinesa continua progressivamente a ocupar uma parcela cada vez maior do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, se tornando uma economia incontornável em qualquer cenário econômico.
A cerimônia de assinatura do memorando de 86 páginas ocorreu na Casa Branca e contou com a presença do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e do vice-primeiro-ministro da China, Liu He.

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Estamos caminhando como sonâmbulos em direção à catástrofe


Estamos caminhando como sonâmbulos em direção à catástrofe


Edgar Morin


Reproduzido de: Pensar Contemporâneo
Um espaço destinado a registrar e difundir o pensar dos nossos dias
Traduzido do site TerraEco




O que fazer neste período de crise aguda? Indignar-se, certamente. Mas, acima de tudo, aja. Aos 98 anos, o filósofo e sociólogo nos convida a resistir ao ditame da urgência. Para ele, a esperança está próxima.

Por que a velocidade está tão arraigada no funcionamento de nossa sociedade?

A velocidade faz parte do grande mito do progresso que anima a civilização ocidental desde os séculos 18 e 19. A ideia subjacente é que agradecemos a ela por um futuro cada vez melhor. Quanto mais rápido formos em direção a esse futuro, melhor, é claro.

É neste contexto que as comunicações, econômicas e sociais, e todos os tipos de técnicas que possibilitaram a criação de transporte rápido se multiplicaram.
Penso em particular no motor a vapor, que não foi inventado por razões de velocidade, mas em servir a indústria ferroviária, que se tornou cada vez mais rápida.

Tudo isso é correlativo por causa da multiplicação de atividades e torna as pessoas cada vez mais com pressa. Estamos numa época em que a cronologia se impõe.

Então isso é novo?

Antigamente, você consultava o sol para se orientar no tempo. No Brasil, em cidades como Belém, ainda hoje nos encontramos “depois da chuva”.
Nesses padrões, seus relacionamentos são estabelecidos de acordo com um ritmo temporal pontuado pelo sol. Mas o relógio de pulso, por exemplo, fez com que o tempo abstrato substituísse o tempo natural. E o sistema de competição e concorrência – que é o de nossa economia de mercado capitalista – significa que, para a competição, o melhor desempenho é aquele que permite a maior velocidade. A competição, portanto, se transformou em competitividade, o que é uma perversão da concorrência.

Essa busca por velocidade não é uma ilusão?

De alguma forma. Não percebemos – embora pensemos que estamos fazendo as coisas rapidamente – que estamos intoxicados pelo meio de transporte que afirma ser rápido. O uso de meios de transporte cada vez mais eficientes, em vez de acelerar o tempo de viagem, acaba – principalmente por causa de engarrafamentos – desperdiçando tempo! Como já disse Ivan Illich (filósofo austríaco nascido em 1926 e morto em 2002, ed): “O carro nos atrasa muito”.
Até as pessoas, imobilizadas em seus carros, ouvem o rádio e sentem que ainda estão usando o tempo de uma maneira útil. O mesmo vale para o concurso de informações. Agora recorremos ao rádio ou a TV para não esperar a publicação dos jornais. Todas essas múltiplas velocidades fazem parte de uma grande aceleração do tempo, a da globalização. E tudo isso nos leva ao desastre.

O progresso e o ritmo em que o construímos necessariamente nos destroem?

O desenvolvimento tecnoeconômico acelera todos os processos de produção de bens e riquezas, os quais aceleram a degradação da biosfera e a poluição generalizada. As armas nucleares estão se multiplicando e os técnicos estão sendo solicitados a fazer as coisas mais rapidamente. Tudo isso, de fato, não vai na direção de um desenvolvimento individual e coletivo!

Por que buscamos sistematicamente utilidade no decorrer do tempo?

Veja o exemplo do almoço. Tempo significa convívio e qualidade. Hoje, a ideia de velocidade faz com que, assim que terminemos o prato, chamemos um garçom que corre para recolher os pratos. Se você ficar entediado com seu vizinho, tende a querer diminuir esse tempo.

Esse é o significado do movimento slow-food que deu origem à ideia de “vida lenta”, “tempo lento” e até “ciência lenta”. Uma palavra sobre isso. Vejo que a tendência dos jovens pesquisadores, assim que eles têm um campo de trabalho, mesmo muito especializado, é que eles se apressem para obter resultados e publiquem um “grande” artigo em uma “grande” revista científica internacional, para que ninguém mais publique antes deles.

Esse espírito se desenvolve em detrimento da reflexão e do pensamento.
Nosso tempo rápido é, portanto, um tempo antirreflexo. E não é por acaso que existem várias instituições especializadas em nosso país que promovem o tempo de meditação. O yoguismo, por exemplo, é uma maneira de interromper o tempo rápido e obter um tempo silencioso de meditação. Dessa maneira, evita-se a cronometria. As férias também permitem que você recupere seu tempo natural e esse tempo de preguiça. O trabalho de Paul Lafargue O direito à preguiça (que data de 1880, ed) permanece mais atual do que nunca, porque não fazer nada significa tempo limite, perda de tempo, tempo sem fins lucrativos.

Por quê?

Somos prisioneiros da ideia de rentabilidade, produtividade e competitividade.
Essas ideias foram exasperadas com a concorrência globalizada, nas empresas, e depois se espalharam para outros lugares. O mesmo vale para o mundo da escola e da universidade! O relacionamento entre o professor e o aluno exige um relacionamento muito mais pessoal do que apenas as noções de desempenho e resultados. Além disso, o cálculo acelera tudo isso. Vivemos um tempo em que ele é privilegiado por tudo. Bem como saber tudo e dominar
tudo. Pesquisas que antecipam um ano de eleições fazem parte do mesmo fenômeno. Chegamos a confundi-los com o anúncio do resultado. Tentamos eliminar o efeito de surpresa sempre possível.

De quem é a culpa? Capitalismo? a ciência?

Estamos presos em um processo espantoso em que o capitalismo, as trocas e a ciência são levados a esse ritmo. Não se pode ser culpa de um homem.
Devemos acusar Newton por ter inventado o motor a vapor? Não. O capitalismo é essencialmente responsável, de fato. Por sua fundação, que é buscar lucro. Pelo seu motor, que é tentar, pela competição, avançar seu oponente.

Pela incessante sede de “novo” que promove através da publicidade… O que é essa sociedade que produz objetos cada vez mais obsoletos? Essa sociedade de consumo que organiza a fabricação de geladeiras ou máquinas de lavar não para a vida útil infinita, mas para se decompor após oito anos? O mito do novo, como você pode ver – mesmo para detergentes – visa sempre incentivar o consumo. O capitalismo, por sua lei natural – a concorrência – empurra, assim, para uma aceleração permanente e por sua pressão consumista, sempre para obter novos produtos que também contribuem para esse processo.

Vemos isso através de múltiplos movimentos no mundo, esse capitalismo é questionado. Em particular na sua dimensão financeira…

Entramos em uma crise profunda sem saber o que sairá dela. As forças de resistência realmente se manifestam. A economia social e solidária é uma delas. Ela representa uma maneira de lutar contra essa pressão. Se observarmos um impulso para a agricultura orgânica com pequenas e médias fazendas e um retorno à agricultura, é porque grande parte do público começa a entender que galinhas e porcos industrializados são adulterados e desnaturalizam solos e águas subterrâneas.

Uma busca por produtos artesanais indica que desejamos fugir dos supermercados que, eles próprios, exercem pressão do preço mínimo sobre o produtor e tentam repassar um preço máximo para o consumidor. O Comércio Justo também está tentando ignorar os intermediários predatórios. O capitalismo triunfa em certas partes do mundo, mas outra margem vê reações que surgem não apenas de novas formas de produção (cooperativas, fazendas orgânicas), mas também da união consciente dos consumidores.

É aos meus olhos uma força não utilizada e fraca porque ainda dispersa. Se essa força tomar conhecimento de produtos de qualidade e de produtos nocivos, superficiais, uma força de pressão incrível será aplicada e influenciará a produção.

Os políticos e seus partidos parecem não estar cientes dessas forças emergentes. Eles não carecem de análise de inteligência…

Mas você parte do pressuposto de que esses homens e mulheres políticos já fizeram essa análise. Mas você tem mentes limitadas por certas obsessões, certas estruturas.

Por obsessão, você quer dizer crescimento?

Sim Eles nem sabem que o crescimento – supondo que volte aos chamados países desenvolvidos – não excederá 2%! Não é esse crescimento que conseguirá resolver a questão do emprego! O crescimento que queremos rápido e forte é um crescimento na competição. Isso leva as empresas a colocar as máquinas no lugar dos homens e, assim, liquidar as pessoas e aliená-las ainda mais. Parece-me assustador que os socialistas possam defender e prometer mais crescimento. Eles ainda não fizeram um esforço para pensar e buscar novos pensamentos.

Desaceleração significaria decadência?

O importante é saber o que deve crescer e o que deve diminuir. É claro que cidades não poluentes, energias renováveis e obras públicas saudáveis devem crescer. O pensamento binário é um erro. É a mesma coisa para globalizar e desglobalizar: é necessário continuar a globalização no que cria solidariedades entre as pessoas e com o planeta, mas deve ser condenada quando cria ou não traz zonas de prosperidade, mas de corrupção ou desigualdade. Eu defendo uma visão complexa das coisas.

A velocidade em si não tem culpa?

Não. Se eu pegar minha bicicleta para ir à farmácia e tentar fazer isso antes dela fechar, vou pedalar o mais rápido possível. Velocidade é algo que precisamos e podemos usar quando necessário. O verdadeiro problema é diminuir com êxito nossas atividades. Retomar o tempo, natural, biológico, artificial, cronológico e conseguir resistir.

Você está certo ao dizer que o que é velocidade e aceleração é um processo extremamente complexo da civilização, no qual técnicas, capitalismo, ciência e economia têm sua parte. Todas essas forças combinadas nos levam a acelerar
sem que tenhamos controle sobre elas. Porque a nossa grande tragédia é que a humanidade é arrastada em uma corrida acelerada, sem nenhum piloto a bordo. Não há controle ou regulamentação. A própria economia não é regulada.

O Fundo Monetário Internacional não é, nesse sentido, um sistema real de regulamentação.

A política ainda não deveria “levar tempo para reflexão”?

Muitas vezes, temos a sensação de que, por sua pressa de agir, de se expressar, ele vem trabalhar sem nossos filhos, mesmo contra eles… Você sabe, os políticos estão embarcando nessa corrida para acelerar. Li recentemente uma tese sobre gabinetes ministeriais. Às vezes, nos escritórios dos conselheiros, havia anotações e registros rotulados como “U” para “urgentes”. Depois veio o “MU” para “muito urgente” e depois o “MMU”. Os gabinetes ministeriais agora estão invadidos, desatualizados.

A tragédia dessa velocidade é que ela cancela e mata o pensamento político pela raiz. A classe política não fez nenhum investimento intelectual para antecipar, enfrentar o futuro. Foi o que tentei fazer em meus livros como Introdução a uma política do homem, Caminho, Terre-patrize… O futuro é incerto, é preciso tentar navegar, encontrar um caminho, uma perspectiva. Sempre houve ambições pessoais na história. Mas eles estavam relacionados a ideias.
De Gaulle sem dúvida teve uma ambição, mas teve uma ótima ideia. Churchill tinha ambição a serviço de uma grande ideia, que era salvar a Inglaterra do desastre. Agora, não há mais grandes ideias, mas grandes ambições com homenzinhos ou mulheres.

Michel Rocard recentemente lamentou sobre “Terra eco” o desaparecimento da visão de longo prazo…

Ele tinha razão e não tinha. Uma política real não está posicionada no imediato, mas no essencial. Por esquecer o essencial da urgência, acabamos esquecendo a urgência do essencial. O que Michel Rocard chama de “longo prazo”, eu chamo de “problema de substância”, “questão vital”. Pensar que precisamos de uma política global para a salvaguarda da biosfera – com um poder de decisão que distribua responsabilidades porque não podemos atribuir as mesmas responsabilidades aos países ricos e aos países pobres – é uma política essencial para longo prazo. Mas esse longo prazo deve ser rápido o suficiente, porque a ameaça está se aproximando.

Edgar Morin, o estado de urgência perpétua de nossas sociedades o torna pessimista?

Essa falta de visão me força a ficar na brecha. Há uma continuidade na descontinuidade. Eu fui da época da Resistência quando jovem, onde havia um inimigo, um ocupante e um perigo mortal, para outras formas de resistência que não carregavam o perigo da morte, mas o de permanecer incompreendido, caluniado ou desprezado.

Depois de ser comunista de guerra e depois de ter lutado com a Alemanha nazista com grandes esperanças, vi que essas esperanças eram enganosas e rompi com esse totalitarismo, que se tornou o inimigo da humanidade. Eu lutei contra isso e resisti. Eu, naturalmente – defendi a independência do Vietnã ou da Argélia, quando se tratava de liquidar um passado colonial. Pareceu-me muito lógico depois de ter lutado pela independência da França, ameaçada pelo nazismo. No final do dia, estamos sempre envolvidos na necessidade de resistir.

E hoje?

Hoje, percebo que estamos sob a ameaça de duas barbáries associadas.
Antes de tudo, humano, que vem do fundo da história e que nunca foi liquidado: o campo americano de Guantánamo ou a expulsão de crianças e pais que estão separados, acontece hoje ! Essa barbárie é baseada no desprezo humano. E então o segundo, frio e gelado, com base em cálculo e lucro. Essas duas barbáries são aliadas e somos forçados a resistir em ambas às frentes.
Por isso, continuo com as mesmas aspirações e revoltas que as da minha adolescência, com a consciência de ter perdido ilusões que poderiam me animar quando, em 1931, eu tinha dez anos.

A combinação dessas duas barbáries nos colocaria em perigo mortal …

Sim, porque essas guerras podem a qualquer momento se desenvolver no fanatismo. O poder destrutivo das armas nucleares é imenso e o da degradação da biosfera para toda a humanidade é vertiginoso. Estamos indo, por essa combinação, em direção a cataclismos. No entanto, o provável, o pior, nunca está certo aos meus olhos, porque às vezes apenas alguns eventos são suficientes para que as evidências se revertam.

Mulheres e homens também podem ter esse poder?

Infelizmente, em nosso tempo, o sistema impede que espíritos se rompam. Quando a Inglaterra foi ameaçada de morte, um homem marginal foi levado ao poder, seu nome era Churchill. Quando a França foi ameaçada, foi De Gaulle.
Durante a Revolução, muitas pessoas, sem treinamento militar, conseguiram se tornar generais formidáveis, como Hoche ou Bonaparte; avocaillons como Robespierre, grandes tribunos. Grandes momentos de crise terrível despertam homens capazes de resistir. Ainda não estamos suficientemente cientes do perigo. Ainda não entendemos que estamos caminhando para um desastre e estamos nos movendo a toda velocidade como sonâmbulos.

O filósofo Jean-Pierre Dupuy acredita que da catástrofe nasce à solução. Você compartilha a análise dele?

Não é dialético o suficiente. Ele nos diz que o desastre é inevitável, mas que é a única maneira de saber que pode ser evitado. Eu digo: é provável que haja um desastre, mas é improvável. Quero dizer com “provável” que, para nós, observadores, no tempo em que estamos e nos lugares em que estamos, com as melhores informações disponíveis, vemos que o curso das coisas está nos levando a desastres. No entanto, sabemos que é sempre o improvável que surgiu e que “fez” a transformação. Buda era improvável, Jesus era improvável, Muhammad, a ciência moderna com Descartes, Pierre Gassendi, Francis Bacon ou Galileu era improvável, o socialismo com Marx ou Proudhon era improvável, o capitalismo era improvável na Idade Média … Veja Atenas. Cinco séculos antes de nossa era, você tem uma pequena cidade grega diante de um império gigantesco, a Pérsia. E duas vezes – embora destruída pela segunda vez – Atenas consegue expulsar esses persas graças ao golpe de gênio do estrategista Temístocles, em Salamina. Graças a essa incrível improbabilidade, nasceu à democracia, que poderia fertilizar toda a história futura e depois a filosofia. Então, se você quiser, posso chegar às mesmas conclusões que Jean-Pierre Dupuy, mas meu caminho é bem diferente. Hoje, existem forças de resistência dispersas, aninhadas na sociedade civil e que não se conhecem.
Mas acredito no dia em que essas forças se reunirão, em feixes. Tudo começa com um desvio, que se transforma em uma tendência, que se torna uma força histórica.

Portanto, é possível reunir essas forças, engajar a grande metamorfose, do indivíduo e depois da sociedade?

O que chamo de metamorfose é o termo de um processo no qual, várias reformas, em todas as áreas, começam ao mesmo tempo.

Já estamos em processo de reformas…

Não, não. Não são essas pseudo-reformas. Estou falando de reformas profundas da vida, civilização, sociedade, economia. Essas reformas terão que começar simultaneamente e ser inter-solidárias.

Você chama essa abordagem de “viver bem”. A expressão parece fraca, tendo em vista a ambição que você lhe dá.

O ideal da sociedade ocidental – “bem-estar” – deteriorou-se em coisas puramente materiais, conforto e propriedade de objetos. E embora essa palavra “bem-estar” seja muito bonita, outra coisa teve que ser encontrada. E quando o presidente do Equador, Rafael Correa, encontrou essa fórmula de “boa vida”, retomada por Evo Morales (presidente boliviano, ed) significava florescimento humano, não apenas na sociedade, mas também na natureza.

A expressão “viver bem” é sem dúvida mais forte em espanhol do que em francês. O termo é “ativo” na língua de Cervantes e passivo na de Molière. Mas essa ideia é a que melhor se relaciona com a qualidade de vida, com o que chamo de poesia da vida, amor, carinho, comunhão e alegria e, portanto, com a qualitativa, que a devemos nos opor à primazia do quantitativo e da acumulação. O bem-estar, a qualidade e a poesia da vida, inclusive em seu ritmo, são coisas que devem – juntas – nos guiar. É para a humanidade uma finalidade tão bonita. Implica também controlar simultaneamente coisas como especulação internacional… Se não conseguirmos nos salvar desses polvos que nos ameaçam e cuja força é acentuada, acelera, não haverá nada de bom.


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